quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

FELIZ ANO NOVO

O Inverno


Velho, velho, velho.
Chegou o Inverno.
Vem de sobretudo,
Vem de cachecol,
O chão onde passa
Parece um lençol.
Esqueceu as luvas
Perto do fogão:
Quando as procurou,
Roubara-as um cão.
Com medo do frio
Encosta-se a nós:
Dai-lhe café quente
Senão perde a voz.
Velho, velho, velho.
Chegou o Inverno.

Eugénio de Andrade

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Silent Night

Chove.É dia de Natal


Chove. É dia de Natal.
Lá para o Norte é melhor:
Há a neve que faz mal,
E o frio que ainda é pior.
E toda a gente é contente
Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente.
Antes isso que nevar.

Pois apesar de ser esse
O Natal da convenção,
Quando o corpo me arrefece
Tenho o frio e Natal não.

Deixo sentir a quem quadra
E o Natal a quem o fez,
Pois se escrevo ainda outra quadra
Fico gelado dos pés.

Fernando Pessoa

domingo, 21 de dezembro de 2008

Le petit renne au nez rouge

Sobre a vida

Natal e não Dezembro


Entremos, apressados, friorentos,
Numa gruta, no bojo de um navio,
Num presépio, num prédio, num presídio,
No prédio que amanhã for demolido...
Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos, e depressa, em qualquer sítio,
Porque esta noite chama-se Dezembro,
Porque sofremos, porque temos frio.

Entremos, dois a dois: somos duzentos,
Duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rasto de uma casa,
A cave, a gruta, o sulco de uma nave...
Entremos, despojados, mas entremos.
Das mãos dadas talvez o fogo nasça,
Talvez seja Natal e não Dezembro,
Talvez universal a consoada.

David Mourão Ferreira

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Silent Night

O meu Natal


Que saudades, do Natal dos meus pais.
Da Família que se reunia,
Para adorarem o Menino.
Pois neste sagrado dia
Éramos, todos nós iguais.
Até o mais pobre e pequenino,
Pela forte Fé que sentia,
Apenas com pouco mais
Já ter muito lhe parecia.
No Presépio, em palhinhas dormia,
O Menino Jesus tão docemente,
São José, Maria, a vaquinha, o burrinho.
Os sinos repicando alegremente
A Missa do Galo que alegria,
Com que a gente se punha a caminho,
Porque, no Natal de antigamente
Mesmo que caísse a neve fria,
A nossa Alma estava quente...
Felizes Natais do Passado,
Da vida que passa a correr,
E só em sonhos nos aparecem,
Como é bom agora Adormecer.
E em recordações embalado,
De tempos que não se esquecem,
Assim antes na velhice ter
Um Natal desses sonhado,
Que os do Presente viver.

José Gabriel Oliveira

Improviso de Outono


donde vem?
de que sorriso
ou fonte
ou pedra aberta
e é para ti que canta
ou, simplesmente,
para ninguém?
que juventude
te morde ainda os lábios?
que rumor de abelhas
te sobe pela garganta?
não perguntes; escuta:
é para ti que canta.

Eugénio de Andrade

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

White Christmas

O gosto da vida


Sinto que a minha mocidade refloresce.
Desejo aquele vinho que me dá calor
e alegria...
Quero vinho...
Dizes que é amargo?
Não importa.
Tem o gosto da vida.
Cecília Meireles

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Silent Night

Cenários de Outono...



Apanhas do chão as palavras gastas,
como frutos podres; uma a uma,
no poema, formam a frase que
nunca imaginaste, com um sentido exacto.

E vês a árvore de onde caíram,
com as suas folhas de sílabas
e os seus ramos de verso, segredar-te
um musgo de sentimento ao ouvido.

Agora, as palavras são tuas.
Envolvem-te como a hera se agarra aos muros,
e crescem por ti dentro até à alma.

Então, colhe as palavras que te enchem,
antes que caiam como frutos podres, e
oferece-as a quem passa, no cesto do poema.

Nuno Júdice

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Happy Christmas

Natal divino


Natal divino ao rés-do-chão humano,
Sem um anjo a cantar a cada ouvido.
Encolhido
À lareira,
Ao que pergunto
Respondo
Com as achas que vou pondo
Na fogueira.
O mito apenas velado
Como um cadáver
Familiar…
E neve, neve, a caiar
De triste melancolia
Os caminhos onde um dia
Vi os Magos galopar…

Miguel Torga

Amo as horas sombrias do meu ser


Amo as horas sombrias do meu ser
em que os meus sentidos se aprofundam;
nelas encontrei, como em velhas cartas,
o meu dia a dia já vivido,
ultrapassado e vasto como uma lenda.

Elas me ensinam que possuo espaço
p´ra uma intemporal segunda vida.
E por vezes sou como a árvore
que madura e rumorosa, sobre uma campa
cumpre o sonho que a criança de outrora
(abraçada por suas cálidas raízes)
perdeu em tristezas e canções.

Ana Haterly

domingo, 14 de dezembro de 2008

Let it snow

Natal


Prelúdio de Natal


Tudo principiava
pela cúmplice neblina
que vinha perfumada
de lenha e tangerinas
Só depois se rasgava
a primeira cortina
E dispersa e dourada
no palco das vitrinas
a festa começava
entre odor a resina
e gosto a noz-moscada
e vozes femininas
A cidade ficava
sob a luz vespertina
pelas montras cercada
de paisagens alpinas

David Mourão-Ferreira

sábado, 13 de dezembro de 2008

Ding, dong merrily on hight

Natal...Na província neva


Como no longe
europeu,
Natal -
mas na província não neva,
nem arde o fogo
nas lareiras,
nem a estrela dos Reis Magos
brilha neste céu.

Idênticos,
Só mesmo a solidão
e o cansaço.

- E toda a esperança,
como nas terras onde neva,
se perdeu.

Fernando Pessoa

Canção da janela aberta


Passa nuvem, passa estrela,
Passa a lua na janela...

Sem mais cuidados na terra,
Preguei meus olhos no Céu.

E o meu quarto, pela noite
Imensa e triste, navega...

Deito-me ao fundo do barco,
Sob os silêncios do Céu.

Adeus, Cidade Maldita,
Que lá se vai o teu Poeta.

Adeus para sempre,
Amigos...Vou sepultar-me no Céu!

Mário Quintana

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Funny Christmas




Boy Noel e as Renas Cantoras

Saudade


"Sorri quando a dor te torturar
E a saudade atormentar
Os teus dias tristonhos vazios
Sorri quando tudo terminar
Quando nada mais restar
Do teu sonho encantador
Sorri quando o sol perder a luz
E sentires uma cruz
Nos teus ombros cansados doridos
Sorri vai mentindo a sua dor
E ao notar que tu sorris
Todo mundo irá supor
Que és feliz"

Charles Chaplin

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Silent Night

Quero ver

Quero ver você não chorar...
Nem olhar pra trás...
Nem se arrepender do que faz...

Quero ver, o amor vencer...
mas se a dor nascer...
você resistir e sorrir...

Se você pode ser assim...
tão enorme assim...
eu vou ser...

Se o Natal existe ...
e ninguém é triste...
e no mundo há sempre amor...

Bom Natal ..
um Feliz Natal...
Muito Amor e Paz pra Você..

Autor desconhecido

domingo, 30 de novembro de 2008

Já muito antes


Quando te vi amei-te já muito antes.
Tornei a achar-te quando te encontrei.
Nasci pra ti antes de haver o mundo.
Não há coisa feliz ou hora alegre
Que eu tenha tido pela vida fora,
Que o não fosse porque te previa,
Porque dormias nela tu futuro.

Fernando Pessoa

Time after time

Canção


Hoje venho dizer-te que nevou
no rosto familiar que te esperava
Não é nada, meu amor, foi um pássaro
a casca do tempo que caiu,
uma lágrima, um barco, uma palavra.

Foi apenas mais um dia que passou
entre arcos e arcos de solidão;
a curva dos teus olhos que se fechou,
uma gota de orvalho, uma só gota,
secretamente morta na tua mão.

Eugénio de Andrade

sábado, 29 de novembro de 2008

Serenata


"Permita que eu feche os meus olhos,
pois é muito longe e tão tarde!
Pensei que era apenas demora,
e cantando pus-me a esperar-te.
Permita que agora emudeça:
que me conforme em ser sozinha.
Há uma doce luz no silêncio,
e a dor é de origem divina.
Permita que eu volte o meu rosto
para um céu maior que este mundo,
e aprenda a ser dócil no sonho
como as estrelas no seu rumo"

Cecília Meireles

Exercício


Pego num pedaço de silêncio. Parto-o ao meio,
e vejo saírem de dentro dele as palavras que
ficaram por dizer. Umas, meto-as num frasco
com o álcool da memória, para que se
transformem num licor de remorso; outras,
guardo-as na cabeça para as dizer, um dia,
a quem me perguntou o que significavam.
Mas o silêncio de onde as palavras saíram
volta a espalhar-se sobre elas. Bebo o licor
do remorso; e tiro da cabeça as outras palavras
que lá ficaram, até o ruído desaparecer, e só
o silêncio ficar, inteiro, sem nada por dentro.

Nuno Júdice

Fumo


Longe de ti são ermos os caminhos,
Longe de ti não há luar nem rosas,
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!

Meus olhos são dois velhos pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas...
Abertos, sonham mãos carinhosas,
Tuas mãos doces, plenas de carinhos!


Os dias são Outonos: choram... choram...
Há crisântemos roxos que descoram...
Há murmúrios dolentes de segredos...

Invoco o nosso sonho! Estendo os braços!
E ele é, ó meu Amor, pelos espaços,
Fumo leve que foge entre os meus dedos!...

Florbela Espanca

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Sonhei contigo


Sonhei contigo embora nenhum sonho
possa ter habitantes com tu, a quem chamo
amor, cada ano pudesse trazer
um pouco mais de convicção a
esta palavra. É verdade o sonho
poderá ter feito com que, nesta
rarefacção de ambos, a tua presença se
impusesse - como se cada gesto
do poema te restitui-se um corpo
que sinto ao dizer o teu nome,
confundindo os teus
lábios com o rebordo desta chávena
de café já frio. Então, bebo-o
de um trago o mesmo se pode fazer
ao amor, quando entre mim e ti
se instalou todo este espaço -
terra, água, nuvens, rios e
o lago obscuro do tempo
que o inverno rouba à transparência
da fontes. É isto, porém, que
faz com que a solidão não seja mais
do que um lugar comum saber
que existes, aí, e estar contigo
mesmo que só o silêncio me
responda quando, uma vez mais
te chamo.


Nuno Júdice

sábado, 22 de novembro de 2008

Amo-te


"Não te amo como se fosse rosa de sal, topázio
Ou flecha de cravos que propagam fogo;
Amo-te como se amam certas coisas obscuras,
Secretamente, entre a sombra e a alma.

Amo-te como a planta que não floresce e
Leva dentro de si, oculta, a luz daquelas flores.
E graças a teu amor, vive oculto em meu
Corpo o apertado aroma que ascende da terra.

Amo-te sem saber como, nem quando, nem onde.
Amo-te directamente sem problemas nem orgulho;
Assim te amo porque não sei amar de outra maneira,

Senão assim, deste modo, em que não sou nem és.
Tão perto de tua mão sobre meu peito é minha,
Tão perto que se fecham teus olhos com meu sonho..."

Pablo Neruda

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Até onde


Chamas: eu ouço, aqui no meu lugar
silencioso porque nada freme
na secura indelével
da solidão. De novo se chamares
gaudinarei à espera do pedido
para que siga o teu apelo em mim;
então hei-de envolver este destino
que levará a ti.
E só então me voltarei. Atenta:
é muito pouco ouvir
palavras a fluírem
sem que saiba porquê o chamamento.
Se me queres entrega-me o segredo
da súbita vontade
e roga-me que vá
até onde encontrar-te. Com enlevo.

António Salvado
(poeta português)

Um dia como os outros


Cansado de ser homem o dia inteiro
chego à noite com os olhos rasos de água.

Posso então deitar-me ao pé do teu retrato,
entrar dentro de ti como num bosque.

É hora de fazer milagres:
posso ressuscitar os mortos e trazê-los
a este quarto branco e despovoado,
onde entro sempre pela primeira vez,
para falarmos das grandes searas de trigo
afogadas na luz do amanhecer.

Posso prometer uma viagem ao paraíso
a quem se estender ao pé de mim
ou deixar uma lágrima nos meus olhos
ser toda a nostalgia das areias.

É a hora de adormecer na tua boca,
como um marinheiro num barco naufragado,
o vento na margem das espigas.

Eugénio de Andrade

domingo, 16 de novembro de 2008

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Beija-flor


Flor...
Flor que beija
Flor que deseja
O beijo do beija-flor
Que não a beija...
Ele voa
Desaparece, reaparece
E pousa em outra flor
Saudade - dor!!
Esperança perdida nos jardins,
Cravos, rosas
Margaridas e jasmins.
Voe e pouse em outra flor.
Sinta o perfume dela.
Leve seu pólen prá florir outra janela.
Traia todas as flores,
Com beijos de todas as cores...
Mas cumpra com seu dever...
Resgate o que cativou.
Faça renascer,
Desejo - beijo - flor,
Eu, você e o amor...
Beija!!! Flor...

Márcia Fasciotti
(poetisa brasileira)

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Poesia


De onde vem – a voz que
nos rasgou por dentro, que
trouxe consigo a chuva negra
do Outono, que fugiu por
entre névoas e campos
devorados pela erva?

Esteve aqui – aqui dentro
de nós, como se sempre aqui
tivesse estado; e não a
ouvimos, como se não nos
falasse desde sempre,
aqui, dentro de nós.

E agora que a queremos ouvir,
como se a tivéssemos re-
conhecido outrora, onde está? A voz
que dança de noite, no Inverno,
sem luz nem eco, enquanto
segura pela mão o fio
obscuro do horizonte.

Diz: “ Não chores o que te espera,
nem desças já pela margem
do rio derradeiro. Respira,
numa breve inspiração, o cheiro
da resina, nos bosques, e
o sopro húmido dos versos.”

Como se a ouvíssemos.

Nuno Júdice

domingo, 9 de novembro de 2008

Chuva


Chove uma grossa chuva inesperada,

Que a tarde não pediu mas agradece.

Chove na rua, já de si molhada

Duma vida que é chuva e não parece.

Chove, grossa e constante,

Uma paz que há-de ser

Uma gota invisível e distante

Na janela, a escorrer...


Miguel Torga

Casa no campo

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

*Murmúrio*


Traz-me um pouco das sombras serenas
que as nuvens transportam por cima do dia!
Um pouco de sombra, apenas,
- vê que nem te peço alegria.

Traz-me um pouco da alvura dos luares
que a noite sustenta no teu coração!
A alvura, apenas, dos ares:
- vê que nem te peço ilusão.

Traz-me um pouco da tua lembrança,
aroma perdido, saudade da flor!
- Vê que nem te digo - esperança!
- Vê que nem sequer sonho - amor!

Cecília Meireles

**********

Hoje é o teu dia.
Estas eram as tuas flores preferidas,Mãe.
Tenho saudades de ti.

Poema das Folhas Secas de Plátano


As folhas dos plátanos
desprendem-se e lançam-se na aventura do espaço,
e os olhos de uma pobre criatura
comovidos as seguem.
São belas as folhas dos plátanos
quando caem, nas tardes de Novembro
contra o fundo de um céu desgrenhado e sangrento.
Ondulam como os braços da preguiça
no indolente bocejo.
Sobem e descem, baloiçam-se e repousam,
traçam erres e esses, cicloides e volutas,
no espaço escrevem com o pecíolo breve,
numa caligrafia requintada, o nome que se pensa,
e seguem e regressam,
dedilhando em compassos sonolentos
a música outonal do entardecer.
São belas as folhas dos plátanos espalhadas no chão.
Eram lisas e verdes no apogeu
da sua juventude em clorofila,
mas agora, no outono de si mesmas,
o velho citoplasma, queimado e exausto pela luz do Sol,
deixou-se trespassar por afiado ácidos.
A verde clorofila, perdido o seu magnésio,
vestiu-se de burel,
de um tom que não é cor,
nem se sabe dizer que nome tenha,
a não ser o seu próprio,
folha seca de plátano.
A secura do Sol causticou-a de rugas,
um castanho mais denso acentuou-lhe os nervos,
e esta real e pobre criatura
vendo o solo coberto de folhas outonais
medita no malogro das coisas que a rodeiam:
dá-lhes o tom a ausência de magnésio;
os olhos, a beleza.

António Gedeão

terça-feira, 4 de novembro de 2008

A um ausente

Robert Rauschenberg
Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu,
enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o acto sem continuação, o acto em si,
o acto que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.
Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.

Carlos Drummond de Andrade

Se me puderes ouvir

( Desconheço o autor)

O poder ainda puro das tuas mãos
é mesmo agora o que mais me comove
descobrem devagar um destino que passa
e não passa por aqui
.
à mesa do café trocamos palavras
que trazem harmonias
tantas vezes negadas:
aquilo que nem ao vento sequer
segredamos
.
mas se hoje me puderes ouvir
recomeça, medita numa viagem longa
ou num amor
talvez o mais belo


José Tolentino Mendonça

Símbolos


Símbolos? Estou farto de símbolos...
Mas dizem-me que tudo é símbolo.
Todos me dizem nada.
Quais símbolos? Sonhos. –
Que o sol seja um símbolo, está bem...
Que a lua seja um símbolo, está bem...
Que a terra seja um símbolo, está bem...
Mas quem repara no sol senão quando a chuva cessa,
E ele rompe as nuvens e aponta para trás das costas
Para o azul do céu?
Mas quem repara na lua senão para achar
Bela a luz que ela espalha, e não bem ela?
Mas quem repara na terra, que é o que pisa?
Chama terra aos campos, às árvores, aos montes.
Por uma diminuição instintiva,
Porque o mar também é terra...

Bem, vá, que tudo isso seja símbolo...
Mas que símbolo é, não o sol, não a lua, não a terra,
Mas neste poente precoce e azulando-se
O sol entre farrapos finos de nuvens,
Enquanto a lua é já vista, mística, no outro lado,
E o que fica da luz do dia
Doura a cabeça da costureira que pára vagamente à esquina
Onde demorava outrora com o namorado que a deixou?
Símbolos? Não quero símbolos...
Queria – pobre figura de miséria e desamparo! –
Que o namorado voltasse para o costureira.

Álvaro de Campos

Amigo é.....


Mal nos conhecemos
Inauguramos a palavra amigo!
Amigo é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece.
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!
Amigo (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
Amigo é o contrário de inimigo!
Amigo é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado.
É a verdade partilhada, praticada.
Amigo é a solidão derrotada!
Amigo é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
Amigo vai ser, é já uma grande festa!

Alexandre O'Neill

Compreensão

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Tempo dos segredos


Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio,
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
Gastámos as mãos à força de as apertarmos,
Gastámos o relógio e as paredes das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tinhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava, mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes
e eu acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco,mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Eugénio de Andrade

sábado, 1 de novembro de 2008

Adágio




Não faças do amanhã o sinônimo de nunca,
nem o ontem te seja o mesmo que nunca mais.
Teus passos ficaram.
Olha para trás...
mas vai em frente
pois há muitos que precisam
que chegues, para poderem
seguir-te.

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Decisões


"nos momentos em que precisamos de tomar uma decisão muito importante, é melhor confiar no impulso, na paixão, porque a razão geralmente procura afastar-nos do sonho - justificando que ainda não é chegada a hora,a razão tem medo da derrota.
-mas a intuição gosta da vida e dos seus desafios."

Paulo Coelho

Alegoria floral

Pintura de Márcio Melo
Um dia em que a mulher nasça do caule da roseira
que cresce no quintal; ou um dia em que a nuvem
desça do céu para vestir de névoa os seus
seios de flor: seguirei o caminho da água nos
canteiros que me levam ao caule, e meter-me-ei
pela terra em busca da raíz.
Nesse dia em que os cabelos da mulher se
confundirem com os fios luminosos que o sol
faz passar pela folhagem; e em que um perfume
de pólen se derramar no ar liberto da névoa:
procurarei o fundo dos seus olhos, onde corre
uma tranparência de ribeiro.
Um dia irei tirar essa mulher de dentro da flor,
despi-la das suas pétalas, e emprestar-lhe o véu
da madrugada. Então, vendo-a nascer com o dia,
desenharei nuvens com a cor dos seus lábios, e
empurrá-las-ei para o mar com o vento brando
da sua respiração.
Depois, cobrirei essa mulher que nasceu da roseira
com o lençol celeste; e vê-la-ei adormecer, como
um botão de rosa, esperando que a nuvem desça
do céu para a roubar ao sonho da flor.

Nuno Júdice

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Sede...


Saio à rua sedento do teu rosto
e apenas surpreendo nas esquinas
o rastro da tua ausência.

Não sei de ti, não dou por ti.
Falta-me a tua voz,
sem a qual não irei adormecer.

Pergunto-me onde estás, onde andarás,
em que nuvem te diluíste
ou que vento te arrastou
a que paragens e perigos
nascidos do meu medo.

Torquato da Luz

Com o silêncio do punhal num peito

Com o silêncio do punhal num peito,
O silêncio do sangue a converter
Em fio breve o coração desfeito
Que nas pedras acaba de morrer,

Vive em mim o teu nome, tão perfeito
Que mais ninguém o pode conhecer!
É a morte que vivo e não aceito;
É a vida que espero não perder.

Viver a vida e não viver a morte;
Procurar noutros olhos a medida,
Vencer o tempo, dominar a sorte,

Atraiçoar a morte com a vida!
Depois morrer de coração aberto
E no sangue o teu nome já liberto...

Alexandre O'Neill

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Cumplicidades

Para ti amigo reencontrado

Oiço falar


Oiço falar da minha vocação
mendicante e sorrio. Porque não sei
se tal vocação não é apenas
uma escolha entre riquezas, como Keats
diz ser a poesia.
Desci à rua pensando nisto,
atravessei o jardim, um cão
saltava à minha frente,
louco com as folhas do outono
que principiara e doiravam
o chão. A música,
digamos assim,
a que toda a alma aspira,
quando a alma
aspira a ter do mundo o melhor dele,
corria à minha frente, subia
por certo aos ouvidos de deus
com a ajuda de um cão,
que nem sequer me pertencia.

Eugénio de Andrade

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Pressa de quê?


" Não tenho pressa. Pressa de quê?
Não têm pressa o sol e a lua: estão certos.
Ter pressa é crer que a gente passe adiante das pernas,
Ou que, dando um pulo, salte por cima da sombra.
Não; não tenho pressa.
Se estendo o braço, chego exactamente aonde o meu
braço chega
Nem um centímetro mais longe.
Toco só aonde toco, não aonde penso.
Só me posso sentar aonde estou.
E isto faz rir como todas as verdades absolutamente
verdadeiras,
Mas o que faz rir a valer é que nós pensamos sempre
noutra coisa,
E somos vadios do nosso corpo.
E estamos sempre fora dele porque estamos aqui."

Alberto Caeiro

Só contigo eu vou


"A ti pertencem todos os meus sonhos,
Meus pensamentos são tua morada,
Sem teu amor tudo seria nada,
O mundo triste e os dias não risonhos.
Minh'alma vive assim toda encantada,
Não há no meu olhar brilhos tristonhos,
Se estás a meu lado os males mais medonhos,
Fogem de medo da tua sombra alada.
Tu és, meu anjo, o meu porto de abrigo,
Não há ninguém no mundo, amor eu juro
Que possa dar-me tudo o que me dás!
Fica p'ra sempre comigo:
Cada lugar é a face do perigo
Quando me vejo onde não estás."

Silvia Schmidt

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Olhar


Olhas-me entre a surpresa e o desencanto
e eu fico embaraçado ante esse olhar:
nada podia perturbar-me tanto
como uns olhos roubados ao luar
das noites em que o tempo e o lugar
se faziam de espuma, luz e espanto.
Mas o que importa, sobre a ruinosa
erosão dos desenganos,
é esta força de quem ousa
amar-te acima do passar dos anos.

Torquato da Luz

Sabedoria


Desde que tudo me cansa,

Comecei eu a viver.

Comecei a viver sem esperança...

E venha a morte quando

Deus quiser.


Dantes, ou muito ou pouco,

Sempre esperara:

Às vezes, tanto, que o meu sonho louco

Voava das estrelas à mais rara;

Outras, tão pouco,

Que ninguém mais com tal se conformara.


Hoje, é que nada espero.

Para quê, esperar?

Sei que já nada é meu senão se o não tiver;

Se quero, é só enquanto apenas quero;

Só de longe, e secreto, é que inda posso amar.

E venha a morte quando Deus quiser.


Mas, com isto, que têm as estrelas?

Continuam brilhando, altas e belas.


José Régio

domingo, 19 de outubro de 2008

O mar estava perto


O mar estava perto,
Fremente de espumas.
Corpos ou ondas:
iam, vinham, iam,
dóceis, leves,
só alma e brancura.
Felizes, cantam;
serenos, dormem;
despertos, amam,
exaltam o silêncio.
Tudo era claro,
jovem, alado.
O mar estava perto
puríssimo, doirado.

Eugénio de Andrade

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

A você, com amor


O amor é o murmúrio da terra
quando as estrelas se apagam
e os ventos da aurora vagam
no nascimento do dia...
...

O amor é a memória
que o tempo não mata,
a canção bem-amada
feliz e absurda...
E a música inaudível...

O silêncio que treme
e parece ocupar
o coração que freme
quando a melodia
do canto de um pássaro
parece ficar...

O amor é Deus em plenitude
a infinita medida
das dádivas que vêm
com o sol e com a chuva
seja na montanha
seja na planura
a chuva que corre
e o tesouro armazenado
no fim do arco-íris.

Vinicius de Moraes