terça-feira, 28 de abril de 2009

Juventude


Sim, eu conheço, eu amo ainda
esse rumor abrindo, luz molhada,
rosa branca. Não, não é solidão,
nem frio, nem boca aprisionada.
Não é pedra nem espessura.
É juventude. Juventude ou claridade.
É um azul puríssimo, propagado,
isento de peso e crueldade.

Eugénio de Andrade

sábado, 25 de abril de 2009

Verbo

Pintura de Sebastian Boada

Ponho palavras em cima da mesa; e deixo
que se sirvam delas, que as partam em fatias, sílaba a
sílaba, para as levarem à boca - onde as palavras se
voltam a colar, para caírem sobre a mesa.

Assim, conversamos uns com os outros. Trocamos
palavras; e roubamos outras palavras, quando não
as temos; e damos palavras, quando sabemos que estão
a mais. Em todas as conversas sobram as palavras.

Mas há as palavras que ficam sobre a mesa, quando
nos vamos embora. Ficam frias, com a noite; se uma janela
se abre, o vento sopra-as para o chão. No dia seguinte,
a mulher a dias há-de varrê-las para o lixo.

Por isso, quando me vou embora, verifico se ficaram
palavras sobre a mesa; e meto-as no bolso, sem ninguém
dar por isso. Depois, guardo-as na gaveta do poema. Algum
dia, estas palavras hão-de servir para alguma coisa.

Nuno Júdice

terça-feira, 21 de abril de 2009

Palavras

Que fizeste das palavras?
Que contas darás tu dessas vogais
de um azul tão apaziguado?

E das consoantes, que lhes dirás,
ardendo entre o fulgor
das laranjas e o sol dos cavalos?

Que lhes dirás, quando
te perguntarem pelas minúsculas
sementes que te confiaram

Eugénio de Andrade

segunda-feira, 20 de abril de 2009

...rosas nos teus dedos


Os anjos que prometes são apenas
o rosto triste dos dias desolados.
Eu não prometo nada, sou alegria.
Aceito os anjos nos beijos que me dás
pondo rosas nos teus dedos descuidados.

Eugénio de Andrade

domingo, 19 de abril de 2009

Não


Não: devagar.
Devagar, porque não sei
Onde quero ir.
Há entre mim e os meus passos
Uma divergência instintiva.
Há entre quem sou e estou
Uma diferença de verbo
Que corresponde à realidade.
Devagar…
Sim, devagar…
Quero pensar no que quer dizer
Este devagar…
Talvez o mundo exterior tenha pressa demais.
Talvez a alma vulgar queira chegar mais cedo.
Talvez a impressão dos momentos seja muito próxima…
Talvez isso tudo…
Mas o que me preocupa é esta palavra devagar…
O que é que tem que ser devagar?
Se calhar é o universo…
A verdade manda Deus que se diga.
Mas ouviu alguém isso a Deus?

Álvaro de Campos

sexta-feira, 17 de abril de 2009

..seja feliz

Desejo


O rosto que tenho nos olhos,
ao sorrir-me em contraluz;
os lábios de onde o bâton
desaparece quando a vida os retoca;
o nariz que desenho com o gesto
em que os meus dedos o lembram;
os cabelos que se desatam como
a mais doce das florestas;
o pescoço adivinhado
sob as folhas e flores da memória;
seios que emergem da espuma
e são as aves que em mim pousam;
um torso curvo nas voltas
e revoltas de um simples abraço;
o ventre em que se juntam
fogo e chama na mais lenta combustão;
e os joelhos que se abrem
no instante da explosão;
tudo, belo e excessivo,
que o teu corpo me dá,
sem mais nada,
além de amor
só.

Nuno Júdice

Risque


quinta-feira, 16 de abril de 2009

...o teu nome


Tu já tinhas um nome, e eu não sei
se eras fonte
ou brisa
ou mar
ou flor.
Nos meus versos chamar-te-ei

amor!

Eugénio de Andrade

A meu favor


A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
esta noite ou uma noite qualquer
A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde tudo recomeça.

Alexandre O'Neill

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Bons sonhos...


Esta noite sonhei que era um rio. Um rio pequenino, é certo, que nada mais conhecia além das montanhas onde nascia, dos amieiros e dos juncos que nele se debruçavam. Como todos os rios, o que eu mais ardentemente desejava era desaguar. Comecei a perguntar onde ficava o mar, mas ninguém me sabia responder. Apontavam-me com um gesto vago ora o este ora o oeste. Escolhera já a forma de desaguar – em delta, claro – mas não recolhera ainda o menor indício da proximidade do mar. Uma noite em que estava acampado ente as dunas cheguei finalmente a uma conclusão (a mesma a que todos os rios chegaram talvez antes de mim): o mar não existia.

(E essa conclusão era salgada.)

terça-feira, 14 de abril de 2009

Amiga


Deixa-me ser a tua amiga, Amor,
A tua amiga só, já que não queres
Que pelo teu amor seja a melhor
A mais triste de todas as mulheres.

Que só de ti, me venha mágoa e dor
O que me importa? O que quiseres
É sempre um sonho bom! Seja o que for,
Bendito sejas tu por mo dizeres!

Beija-me as mãos, Amor, devagarinho...
Como se os dois nascessemos irmãos,
Aves cantando, ao sol, no mesmo ninho...

Beija-mas bem!... Que fantasia louca
Guardar assim, fechados, nestas mãos,
Os beijos que sonhei pra minha boca!...


Florbela Espanca

O teu riso


Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas não
me tires o teu riso.

Não me tires a rosa,
a lança que desfolhas,
a água que de súbito
brota da tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.

(...)

À beira do mar, no Outono,
teu riso deve erguer
sua cascata de espuma,
e na primavera, amor,
quero teu riso como
a flor que esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.

Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
tortas da ilha,
ri-te deste grosseiro
rapaz que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando meus passos vão,
quando voltam meus passos,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria.

Pablo Neruda

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Não descubro o segredo


Nem o tempo tem tempo
para sondar as trevas

deste rio correndo
entre a pele e a pele.

Nem o tempo tem tempo
nem as trevas dão tréguas.

Não descubro o segredo
que o teu corpo segrega.

David Mourão-Ferreira

sábado, 11 de abril de 2009

Abdicação


Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho. Eu sou um rei
Que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.
Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mãos viris e calmas entreguei;
E meu ceptro e coroa - eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços.
Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas, de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.
Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.

Fernando Pessoa

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Tarde de saudade


Nessa tarde mimosa de saudade
Em que eu te vi partir, ó meu amor,
Levaste-me a minh'alma apaixonada
Nas folhas perfumadas duma flor.

E como a alma, dessa florzita,
Que é minha, por ti palpita amante!
Oh alma doce, pequenina e branca,
Conserva o teu perfume estonteante!

Quando fores velha, emurchecida e triste,
Recorda ao meu amor, com teu perfume
A paixão que deixou e qu'inda existe...

Ai, dize-lhe que se lembre dessa tarde,
Que venha aquecer-se ao brando lume
Dos meus olhos que morrem de saudade!


Florbela Espanca

Sorriso


Creio que foi o sorriso.
O sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz lá dentro,
apetecia entrar nele, tirar a roupa,
ficar nu dentro daquele sorriso.

Correr,
navegar,
morrer naquele sorriso.

Eugénio de Andrade

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Cerejeira em flor


Acordar, ser na manhã de Abril
a brancura desta cerejeira;
arder das folhas à raiz,
dar versos ou florir desta maneira.
Abrir os braços, acolher nos ramos
o vento, a luz, ou o quer que seja;
sentir o tempo, fibra a fibra,
a tecer o coração de uma cereja.


Eugénio de Andrade

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Cantiga


É pelo teu rosto em que as marés passam,
pelos teus lábios em que voam gaivotas,
pelos teus dedos em que a luz perpassa,
pelos teus olhos que me traçam as rotas,

que este barco encontra o caminho,
que este dia descobre que não é tarde,
que as palavras se bebem como vinho,
e o fogo não queima quando arde.

É no que me dizes quando a noite fala,
no que perdura da manhã que se esquece,
no que é dito em tudo o que se cala,
e não precisa de ser dito quando amanhece.

Pode ser o amor tantas vezes sentido,
ou só aquilo que vive no coração,
pode ser o que pensava ter esquecido,
e regressa agora pela tua mão.

Quantas vezes já foi primavera,
e logo aí as flores morreram:
até ao dia em que nada ficou como era,
e todas as folhas mortas reverdeceram.

Nuno Júdice

...a um nenúfar


Um nenúfar flutua
na mesma água
que a Lua.

Jorge de Sousa Braga

domingo, 5 de abril de 2009

Dentro de ti...


Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.

Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.

Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão...

Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que me sai, sem voz, do coração.


David Mourão-Ferreira

sábado, 4 de abril de 2009

...tudo pela metade


Eu admiro o que não presta
Eu escravizo quem eu gosto
Eu não entendo
Eu trago o lixo para dentro
Eu abro a porta para estranhos
Eu cumprimento
Eu quero aquilo que não tenho
Eu tenho tanto a fazer
Eu faço tudo pela metade
Eu não percebo
Eu falo muito palavrão
Eu falo muito mal
Eu falo muito
Eu falo mesmo
Eu falo sem saber o que estou falando
Eu falo muito bem
Eu minto

Marisa Monte, Nando Reis

Marambaia



sexta-feira, 3 de abril de 2009

Falo de ti às pedras das estradas



Falo de ti às pedras das estradas,
E ao sol que é louro como o teu olhar,
Falo ao rio, que desdobra a faiscar,
Vestidos de princesas e de fadas;

Falo às gaivotas de asas desdobradas,
Lembrando lenços brancos a acenar,
E aos mastros que apunhalam o luar
Na solidão das noites consteladas;

Digo os anseios, os sonhos, os desejos
Donde a tua alma, tonta de vitória,
Levanta ao céu a torre dos meus beijos!

E os meus gritos de amor, cruzando o espaço,
Sobre os brocados fúlgidos da glória,
São astros que me tombam do regaço!

Florbela Espanca

...Primavera

Só um sorriso


À minha porta senta-se outra vez
o Inverno. Traz consigo
o mar. Está velho
e magro o mar, negro de crude.
Também traz árvores; cegas
e sem nenhum pássaro:
mesmo sem vento cambaleiam.
Tenho dó das suas folhas
de barco na rua,
a respiração difícil.
Quem virá, injuriando o tempo,
sacudindo as grossas
gotas de frio?
Só um sorriso aceso
lhe aqueceria as mãos; do coração
não falo: não há lume
que o torne enxuto e novo.

Eugénio de Andrade

quinta-feira, 2 de abril de 2009

quarta-feira, 1 de abril de 2009

A árvore do silêncio


Se a nossa voz crescesse , onde era a árvore?
Em que pontas, a corola do silêncio?
Coração já cansado, és a raiz:
Uma ave te passe a outro país.

Coisas de terra são palavra.
Semeia o que calou.
Não faz sentido quem lavra
Se o não colhe do que amou.

Assim, sílaba e folha, porque não
Num só ramo levá-las
Com a graça e o redondo de uma mão?
(Tu não te calas? Tu não te calas?)


Vitorino Nemésio

...Março voltou


....Março voltou, esta
....ácida loucura de pássaros
....está outra vez à nossa porta,
....o ar

....de vidro vai direito ao coração.
....Também elas cantam, as montanhas:
....somente nenhum de nós
....as ouve, distraídos

....com o monótono silabar do vento
....ou doutros peregrinos.
....Já sabeis como temos ainda restos
....de pudor,

....e pelo mundo
....uma enorme, enorme indiferença.

....Eugénio de Andrade